A seleção que ninguém mais vê

As camisas já não ficam mais pra dentro do calção, as chuteiras já não são mais pretas e nem os jogadores da primeira fila se agacham mais para o retrato oficial do time. Mas nenhuma dessas metamorfoses melancólicas pela qual o nosso futebol passa me imprime mais pavor do que o tristíssimo e irrevogável abandono da Seleção Brasileira.

No meu tempo, vejam vocês, jogo do Brasil era evento inviolável, que exigia a veneração do silêncio e o apreço do olhar. O embate começava dias antes da peleja, na expectativa, e ia fermentando na espera, nas conversas de boteco, nas escalações presumidas. Falava-se por dias sobre o escrete nacional, o esquema, o treinador, o adversário, sempre com o respeito e o cuidado com que se fala com da própria mãe. E quando a hora do jogo chegava, todos os ouvidos colavam no radinho e todos os olhos fitavam o aparelho de televisão. Aqueles que, por ventura, não tinham uma coisa nem outra logo invadiam as casas dos vizinhos e eram imediatamente recebidos com calor e ternura. E os que não tinham vizinhos iam para frente das lojas de departamento espiar os televisores acesos nas vitrines. As ruas ficavam vazias, tristes, ocupadas pelo vento e pelas folhas secas e o país parava por 90 minutos, sorvendo a poesia e o rebolado da camisa amarela.

Era assim, com uma reverência quase sacra, que nós tratávamos a Seleção.

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O Cristo Redentor e as taças Jules Rimet e Copa do Mundo.

Hoje, meus caros, um jogo do escrete nacional é tratado com o desdém de uma Sessão da Tarde. Pior: é maldito porque encerra a novela 20 minutos mais cedo. Ou pior ainda: nem maldito é porque sucumbe à indiferença – maior e mais importante que um gol raro de Neymar é a receita culinária discutida no Masterchef.

Senão, vejamos. Ontem, duelaram amigavelmente Estados Unidos e Brasil. E do nosso lado, estreou Rafinha Alcântara, filho do Mazinho, cria do Vasco e do Palmeiras, campeão da Copa do Mundo de 1994. E Rafinha começou sua história com um gol belíssimo, de trançadas de perna e toque sutil entre arqueiro e beque. Contudo, quase ninguém viu a graça do feito e o encanto do fato porque o país acompanhava, vejam só, um programa de cozinha.

Olhem, meus caros, para o requinte de crueldade: estamos perdendo a maior camisa do futebol para uma lasanha de abobrinha.

O povo, que antes se apinhava em frente às tevês para delirar com um pouquinho de futebol fino agora mal pergunta o placar da peleja no dia seguinte. E quando ouve, assim, sem querer, entre uma fofoca e outra da novela, ainda estranha os nomes porque não acompanha a convocação e porque, mais que tudo, nutre pelos nossos soldados a mais profunda indiferença.

Assim, essa gente vai empurrando a Seleção para porão da memória, de onde vai ser resgatado – cheio de pó e amarrado em teias – daqui a quatro anos, não porque ainda é amado nem porque faz falta, mas, sobretudo, porque é tempo disso.

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Neymar e a solitária lembrança dos craques do passado.

E aos poucos, a cultura da nossa terra vai sendo irremediavelmente desfigurada, e nossas crianças vão crescendo ao sabor do desprezo por uma camisa que antes causava arrepio.

Ser brasileiro, todos nós sabemos, traz problemas incontáveis – aí está a Lava Jato, o Mensalão, o Dólar e outras mazelas que não me deixam mentir. Mas traz, sobretudo, um benefício supremo, que é nascer torcedor do maior escrete de futebol que o mundo já viu. Sim, porque quando chegamos ao mundo nós somos abençoados com a camisa canarinho. E são só 200 milhões de nós contra 7 bilhões de eles. Somos poucos os felizes. E são muitas as crianças desta terra que nos olham com aqueles olhos de pranto e lamento, tendo que envergar outra camisa, sem o peso, sem a glória, sem a graça da nossa.

E no entanto, o que fazemos nós com esse predicado todo? Trocamos, pouco a pouco, jogo a jogo, por uma trama fina de novela aqui, um programa simpático de culinária ali e, assim, entre a chacota e a ironia, vamos largando pelo caminho o orgulho maior de sermos todos filhos de Garrincha.

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Adriano Ávila

A prova inquestionável que existe vida inteligente fora da Terra é que eles nunca tentaram contato com a gente.

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