1990: A Última Copa

A última edição de uma Copa do Mundo, tal qual Jules Rimet a concebeu, aconteceu em 1990, na Itália. De lá para cá, os estádios foram susbtituídos por arenas, os jogos por “entregas”, os torcedores por consumidores, os jogadores por atletas ou ainda, ativos dos clubes e mais recentemente, ativos digitais e a emoção virou esperiência. “O prazer de jogar deu lugar à obrigação de ganhar”, nas sábias palavras do escritor uruguaio, Eduardo Galeano (1940 a 2015).

Entretanto, a questão levantada aqui não é o saudosismo por uma época passada ou perdida ou ainda, “no meu tempo era melhor”. Torna-se importante e até mesmo pertinente, percebermos que toda sociedade evolui como um todo, o que não significa que todos os seus setores adquirem a mesma velocidade nesse processo e também, que nem todas as evoluções são para o bem, necessariamente.

Chegamos, portanto, ao ponto-chave que o texto se compromete a debater ou provocar, que é a relação do futebol com as pessoas que o cercam, o desenvolvem (dentro e fora de campo) e o consomem, ainda mais agora com a Copa do Mundo de 2022 no Catar, país com tantas questões para resolver em relação aos direitos humanos, como o machismo e a homofobia, cenários e crimes que acontecem também no Brasil e em muitos outros países do ocidente, mas com uma diferença, não são “chancelados por lei” pelos seus governos.

Soma-se a tudo isso, o fato da Copa ser realizada logo na sequência de dois anos desafiadores, em todos os sentidos: psicológicos, econômicos, sociais, científicos e culturais, para indivíduos e governos, decorrentes do Covid19, que inclusive, acelerou todas as mudanças nas relações sociais e comerciais por meio da tecnologia, o cerne da questão presente aqui, pois como venho dizendo há algum tempo, a principal função da tecnologia no Século XXI será humanizar o ser humano e isso, não é o que vem acontecendo exatamente. Previsível até.

O que estamos vendo nesse sentido é um deslumbramento com todas as possibilidades de interação e engajamento que a tecnologia promove, seja nas redes sociais ou nas próprias arquibancadas, onde agora, temos a alternativa de “ver”, por exemplo, o jogo por meio dos celulares que ficam entre os nossos olhos e o campo, nos trazendo infográficos sobre os jogadores, clima, estatísticas, etc.

 

 

Ora, alguém poderia dizer: “é uma alternativa apenas, para quem quiser.” Bom, existe um paradoxo aqui, pois tanta tecnologia parece estar afastando as pessoas do que acontece em campo e não, aproximando ambos. Quem sabe os óculos de realidade aumentada, etc, permitam ao torcedor, torcer, uma vez que segurar o celular e prestar atenção nos infográficos, mais digitar as opções, estão longe de ser o ideal para apreciar toda a movimentação do jogo de futebol, com e sem a bola, acontecendo diante deles no campo e também, o óbvio, a torcida vibrando nas arquibancadas. Talvez seja uma questão de tempo e de entendimento, além de maturidade, do que é produzido. O que acontece muito é comercializar algo sem estar pronto, com a falácia do “vamos aprimorando com os feedbacks”. É bem verdade que muitas soluções precisam desses retornos durante suas vidas úteis, mas não é o que acontece com algumas “entregas” de produtos vinculados às Copas do Mundo, parece não haver uma preocupação com aspectos psicológicos, onde a “noção do pertencimento” é usada de forma negligente para validar tais soluções.

Todos esses ingredientes, como as novas formas de transmissão, o consumo multitela dos jogos, a migração conceitual envelopada da “emoção” para “experiência” e o excesso de recursos tecnológicos, além das inúmeras possibilidades de apostas online durante uma partida (já presenciei, por exemplo, um torcedor comemorando o gol sofrido, pois ganharia uma “bolada” nas casas de apostas) vão enfraquecendo o que de fato é o principal: o jogo de futebol e sua interação com a torcida. O segredo sempre esteve no equilíbrio entre tradição e inovação.

Estamos afastando de várias formas, umas mais sedutoras do que outras, a maioria dos torcedores do contato presencial com o jogo, mesmo quando esses estão presentes nas arquibancadas, afastando também, o torcedor mais humilde dos estádios, pois agora são arenas e nelas, precisa-se de muito dinheiro para acompanhar o seu time do coração num campeonato.

Elitizar o futebol não é um fenômeno contemporâneo, ele foi concebido no final do Século XIX, dentro das universidades inglesas para nobres, mas o que fez esse esporte ser o que é hoje, foram os trabalhadores das fábricas e das indústrias e, sobretudo, o negro pobre que introduziu de forma sublime o drible e a ginga, onde o Brasil possui o maior expoente de todos os tempos: Pelé. Recomendo a leitura desse texto. “O Drible é Negro”, do escritor, filósofo e pesquisador, Renato Nogueira.

Quando dirigentes de clubes, Federações ou da Fifa afastam o torcedor mais humilde das arenas (estádios) e também, os impedem de consumir serviços ou produtos oficiais, devido aos valores super elevados, incorrem num paradoxo, pois não valorizam quem é o responsável pela precificação das próprias cotas de TV, no caso dos clubes, por exemplo, que mensuram o tamanho das suas torcidas (formadas por mais de 90% de cidadãos mais pobres) para a composição dos valores nas propostas de transmissão dos seus jogos.

Todas essas ações e decisões nos rumos do futebol como negócio, e tem que ser visto nesse prisma também, mas não exclusivamente por ele, desembocaram numa Copa de 2022 artificial, que foi sendo construída ao longo das décadas, a partir de 1994, com um leve respiro em 1998, sendo completamente descaracterizada a partir de 2014.

Importante frisar que o questionamento aqui contempla o evento como um todo – pois sempre existirão partidas emocionantes – e suas relações com o futebol de todas as formas: esportivas, culturais e políticas, englobando países, cidadãos e, principalmente, o legado onde uma Copa do Mundo é realizada. Aliás, torço muito que a interação da população do Catar com outras nações e culturas promovam mudanças significativas no sistema de governo do país.

Muita coisa mudou desde 1930 e ainda vai mudar bastante, pois estamos apenas no início da terceira década do Século XXI. Para se ter uma noção, é como se estivéssemos em 1922, em relação ao século passado. Quanta coisa aconteceu e como a tecnologia evoluiu, desde então.

Havelange não gostava e Blatter, como Infantino, também não gostam de futebol e nem têm a “obrigação legal” de gostar para ocuparem as cadeiras onde sentam, mas seria bom que os presidentes da Fifa, detentora de todos os direitos de uma Copa do Mundo, se preocupassem com o jogo. (Mais uma recomendação de leitura: Mundialito: A Copa que a FIFA Escondeu). Não são o dinheiro e a tecnologia que tornam algo artificial, é como lidamos com eles, quando os enxergamos, por exemplo, como objetivos e não como ferramentas de transformação. O termo “AI” (Inteligência Artificial, em inglês)  poderia mudar para “CI” (Inteligência Complementar).

 

 

Podcast:

 

Clique na imagem abaixo e confira o bate-papo na íntegra no Bora Pra Resenha Podcast onde falamos sobre a revitalização das marcas dos clubes de futebol, seleção brasileira, calendário, VAR, regras atualizadas, as novas demarcações do campo e muitas outras curiosidades sobre a história do futebol:

Futbox no Bora Pra Resenha

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João Corneta

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