MUNDIALITO. A COPA QUE A FIFA ESCONDEU

Em dezembro de 1980 era realizado o grande Mundialito de Seleções, reunindo pela primeira vez na história, todas as campeãs de mundo, desde 1930! Mas… espera um pouco, realizado o quê?

A Copa de Oro ou Mundialito, como ficou mais conhecida na América do Sul, foi uma competição de futebol entre seleções, realizada pela FIFA no Uruguai, no período de 30 de dezembro de 1980 a 10 de janeiro de 1981.

 

Ilustração Mundialito: acervo Futbox

Ilustração Mundialito: acervo Futbox

Pergunta

 

Se pesquisarmos no site da FIFA “Copa de Oro 1980” ou “Mundialito 1980”, não encontraremos nenhuma informação. Nada. Se alterarmos a data para 1981 o resultado também será “no results found.” Por quê?

 

 

Antes de responder essa pergunta, torna-se necessário conhecer a história da competição, que celebrou os 50 anos das Copas do Mundo de Futebol.

 

Origens

 

A primeira edição de uma Copa do Mundo aconteceu em 1930 no Uruguai, quando o país sede sagrou-se campeão, vencendo a Argentina por 4×2 na final. Depois disso, tivemos mais duas edições: em 1934 e 1938, ambas vencidas pela Itália. Um ano depois, eclodiu a II Guerra Mundial (1939-45) e a competição foi interrompida retornando apenas em 1950, com sede no Brasil, uma vez que a Europa encontrava-se devastada. A partir daí, a cada quatro anos, uma nova edição de Copa do Mundo é realizada até hoje.

 

Curiosidade

 

A Copa do Mundo de 1950 foi a única edição em que não existiu um jogo final e sim, um quadrangular final entre Brasil, Espanha, Suécia e Uruguai, para determinar o campeão. Na última rodada do quadrangular a seleção brasileira, que jogava pelo empate, foi derrotada de virada pelos uruguaios por 2×1, em pleno Maracanã. O famoso “Maracanazo” celebrado pelos uruguaios até hoje.

 

Placar 1950

Quadrangular final 1950: placar

 

Inclusive, esse foi o último jogo do Brasil no Maracanã em Copas do Mundo. Em 2014 a organização do Mundial previu apenas o jogo final da seleção canarinho no estádio. Soberba para não falar ingenuidade. Os 7×1 impediram o Brasil de espantar o Maracanazo que continua firme e forte, obrigado.

 

De volta ao Mundialito

 

Para celebrar o sucesso das Copas do Mundo e os 50 anos da primeira edição, Aparicio Méndez (presidente do Uruguai), João Havelange (presidente da FIFA), o marinheiro Yamandú Flangini (capitão responsável pela AUF – Asociación Uruguaya de Fútbol) e Washington Cataldi (presidente do Peñarol e idealizador do torneio), criaram em 1980, a Copa de Oro de Campeones Mundiales, ou se preferirem, Mundialito.

O torneio foi financiado por um empresário de origem grega que vivia no Uruguai, Angelo Vulgaris, dono de uma multinacional de carne e gado com bandeira do Panamá.

 

Homens-chave: Aparicio Méndez, João Havelange, Yamandú Flangini e Washington Cataldi

Homens-chave: Aparicio Méndez, João Havelange, Yamandú Flangini e Washington Cataldi

 

A competição reuniu todos os campeões mundiais de 1930 a 1978: Uruguai (1930, 1950), Itália (1934, 1938), Alemanha Ocidental (1954, 1974), Brasil (1958, 1962 e 1970), Argentina (1978) e Países Baixos (Holanda, vice campeã em 1974 e 1978) que entrou no lugar da Inglaterra, campeã em 1966 e como de costume, não quis participar da competição. Há quem diga que foi um protesto contra a ditadura no Uruguai.

 

Ilustração Futbox: escudos 1980

Ilustração Futbox: escudos 1980

 

Regulamento

 

O Mundialito era formado por dois grupos com três seleções, cada. Todas jogavam entre si dentro dos grupos, em jogo único, e a campeã de cada grupo disputaria a final, também em uma única partida. O Grupo 1 era composto por Holanda, Itália e Uruguai. O Grupo 2 por Alemanha Ocidental, Argentina e Brasil. Veja a ficha de todos os jogos aqui.

 

O Troféu

 

Walter Pagella foi o escolhido para a confecção do troféu. Foram 14 dias apenas, cada um com 14 horas de trabalho, ininterruptas, até a entrega da “jóia”, como o ourives costumava chamar o troféu. Com 18 quilates, o troféu demandou 4 quilos de ouro. Nas fotos abaixo, Walter aos 36 anos em 1980 e com 74 em 2018:

 

Walter Pagella aos 36 anos confeccionando o "Mundialito".

Walter Pagella aos 36 anos confeccionando o “Mundialito”.

 

Walter Pagella com a esposa em seu album de fotografias

Walter Pagella com a esposa em seu album de fotografias

 

Walter: 74 anos em 2018

Walter: 74 anos em 2018

 

Souvenirs – Mundialito

 

11 Souvenirs 1

Baralho: Compania General de Fósforos Montevideana

11 Souvenirs 3

Selo e bottom Mundialito

11 Souvenirs 2

Selos “Uruguay Campeón”

 

Transmissão dos jogos

 

Todos os jogos foram realizados no estádio Centenário, em Montevidéu, com cobertura para toda América do Sul e Europa. No velho continente as partidas foram transmitidas pela rede italiana, TV RAI e suas afiliadas, numa manobra de um jovem empreendedor da midia na época, Silvio Berlusconi, envolvendo o satélite Channel 5 que faria a divulgação das imagens.

De acordo com Pino Frisoli e Massimo De Luca (Sport in TV), os organizadores do Mundialito ofereceram os direitos por um milhão e meio de dólares à Eurovision. Um valor muito alto na época, seguido de uma contraproposta da emissora em torno de 750 mil dólares. As negociações falharam. Foi então que a Rete Italia, uma empresa da Fininvest de Berlusconi, entrou em cena e fechou o acordo, em dois dias, por 900 mil dólares para os 7 jogos do torneio. Foi o início da relação Berlusconi-RAI. A competição foi um sucesso incrível de audiência na Europa e na América do Sul.


Galeria de fotos – Mundialito

 

Brasil 1980

Seleção brasileira

5 ger vs arg

Alemanha Ocidental vs Argentina

5 ita vs ned

Itália vs Holanda

5 bra vs arg

Rivalidade entre Brasil e Argentina

Final: gol de Waldemar Victorino

Final: gol de Waldemar Victorino

5 Uruguai

Rodolfo Rodríguez ergue a Copa de Oro

5 Uruguai campeon 2

Uruguai campeão

 

A Final

 

No dia 10 de janeiro de 1981, no estádio Centenário lotado, aliás como em todas as demais partidas da competição, o Uruguai venceu o Brasil. Novamente um dramático 2×1 como na Copa de 1950. Gols de Barrios e Victorino para a Celeste e Sócrates, de pênalti, para o Brasil. Era o início do fim da ditadura militar no Uruguai.

 

Início do fim da ditadura?

 

Sim. Para entender esse processo precisamos retornar à pergunta inicial: por que diabos a FIFA escondeu o Mundialito de todos os seus registros oficiais?

Antes de responder tudo isso, vamos conhecer um pouco do momento histórico vivido pelo país (Uruguai) nesse período.

Importante ressaltar também, que o Mundialito foi transformado em um evento de propaganda para o regime presidido por Aparicio Méndez, que assumiu o cargo apenas dois meses após o pleito com Alberto Demicheli, que sucedeu a Juan María Bordaberry, autor do golpe em fevereiro de 1973. Apenas três anos depois, já em 1976, haviam mais de 6 mil prisioneiros políticos no Uruguai, com uma população estimada, na época, em torno de três milhões de pessoas.

 

Na Política

 

O Uruguai é o campeão de quase tudo relacionado à qualidade de vida hoje em dia na América do Sul. Mas nem sempre foi assim.

Em 27 de junho de 1973, por meio de um pronunciamento no radio e na TV, o Presidente do Uruguai, Juan María Bordaberry, com o apoio das forças armadas, fechou o Senado e a Câmara dos Deputados. Era o início do golpe civil-militar liderado por Aparicio Méndez, advogado, com o propósito de reformar a Constituição. Fez parte da “Operação Condor” que atuou também nos golpes ocorridos na Argentina, Brasil e Chile, durante as décadas de 1970 e 1980. A Operação, em parceria com a CIA, tinha o objetivo de coordenar a repressão aos opositores das ditaduras nos países da América do Sul.

Voltando ao Uruguai, foi um periodo de muita repressão e medo no país, como mostram os relatos a seguir extraídos do documentário: “Memórias do Chumbo – O Futebol nos Tempos do Condor” do jornalista, Lúcio de Castro:

“A tortura não era para obter informações importantes para a segurança do país como afirmava o regime militar, mas sim para semear o medo … A tortura era legitimada pelo regime e alcançava qualquer cidadão, não só os considerados subversivos pela ditadura. As pessoas pensavam: posso ser a vítima de amanhã.” Eduardo Galeano – escritor.

“A maioria das pessoas tinha um familiar preso na época.” Lilian Celiberti – ex-exilada no Brasil.

“Os militares, convictos e orgulhosos do seu poder, convocaram um plebiscito entre o SIM e o NÃO para legitimar o regime militar no poder, nascido do golpe de 1973.” Sebastián Bednarik – Cineasta.

 

7 plebiscito

Plebiscito: Não e Sim

 

O plebiscito citado acima por Bednarick foi realizado em novembro de 1980, um mês antes do Mundialito. O povo uruguaio iria votar SIM ou NÃO para a continuação/ legitimação do governo militar, pós golpe de 1973. Para surpresa absoluta dos militares (surpresa?) o NÃO ganhou e explicitou a revolta da população contra o regime imposto.

 

7 plebiscito 2

Plebiscito: vitória do Não

 

No Futebol

 

A poderosa seleção uruguaia vivia em 1980 um momento incômodo, pois seus principais rivais a ultrapassavam em importância, devido aos craques que produziam: Pelé, Didi, Garrincha, Zico, Sócrates, Falcão, Kempes, Ardiles, Passarella, Maradona e aos títulos que conquistavam: Tricampeonato Mundial do Brasil (Copas de 1958, 1962 e 1970) e a Copa vencida pela Argentina em 1978.

Já se passavam 30 anos, desde a conquista do Mundial de 1950 e o Mundialito era a ocasião perfeita para o Uruguai recuperar sua hegemonia no continente sul-americano.

Internamente, influenciado também pelo momento histórico-político que vivia, o futebol do Uruguai produziu um ilustre campeão nacional em 1976: O Defensor SC. Pequeno clube da capital Montevidéu que conquistara pela primeira vez o título uruguaio no ano da inauguração do profissionalismo do futebol no país. O time era dirigido pelo professor, de fato, José Ricardo De León. “Um homem de esquerda” como afirmou o historiador, Geraldo Caetano no documentário citado anteriormente.

De León mudou a cultura do futebol uruguaio. Seu time marcava os adversários pressionando a saída de bola ao invés de recuar e montar uma defesa sólida, explorando os contra-ataques, como era praticado o futebol no Uruguai daquela época.

O clube tinha um posicionamento revolucionário dentro e fora de campo. Quando sagrou-se campeão em 1976 deu a volta olímpica ao contrário, pela esquerda. Esse ato foi muito emblemático na ocasião, somado ao fato da “volta olímpica” ter sido uma invenção uruguaia em 1924, quando a seleção conquistou a medalha de ouro no futebol na Olimpíada de Paris. Origem, inclusive, da expressão “Celeste Olímpica”.

Outro acontecimento inusitado envolvendo “La Violeta”, como o clube também é conhecido até hoje, foi quando um dos seus principais jogadores, Pedro Graffigna, teve seu passaporte confiscado no aeroporto de Montevidéu, impedindo-o de viajar para a Argentina. O Defensor iria enfrentar os poderosos Boca e River pela Libertadores de 1977. Graffigna era considerado um jogador subversivo e não pôde deixar o país.

 

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Graffigna, segundo agachado da direita para à esquerda

 

A resposta

 

O cenário politico-esportivo vivido no Uruguai às vésperas do Mundialito era efervescente e revolucionário. Dentro e fora de campo. Alguns trechos do documentário de Lúcio de Castro sobre essa situação:

“Os militares infiltravam-se nos clubes de futebol dos bairros e do interior e vetavam qualquer pessoa de esquerda que desejasse se candidatar a um cargo nesses clubes. Também comandavam a seleção uruguaia e definiam os resultados das eleições nos clubes da primeira divisão do país.” Geraldo Caetano – Historiador, ex-jogador de futebol.

“O regime militar queria que o Mundialito transmitisse para o mundo o êxito da ditadura.” Eduardo Galeano – escritor.

“O Mundialito foi onde, pela primeira vez, o povo uruguaio teve coragem de gritar contra a ditadura militar: Vai acabar, vai acabar a ditadura militar!” Eduardo Galeano – escritor.

“Hugo de León (jogador do uruguai no Mundialito) não ganhou o carro que os militares nos prometeram porque tirou a camisa da seleção e mostrou a do Grêmio, que estava por baixo. Ele tinha acabado de ser vendido para o clube brasileiro. Depois os militares disseram que nenhum jogador que saísse do país ganharia um carro, como desculpa para o episódio.” Fernando Álvez – ex-jogador da seleção uruguaia.

 

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Hugo De León com a camisa do Grêmio

 

Montevidéu em festa. Foto: Juha Tamminen

Montevidéu em festa. Foto: Juha Tamminen

 

Montevidéu em festa. Foto: Juha Tamminen

Montevidéu em festa. Foto: Juha Tamminen

 

Montevidéu em festa. Foto: Juha Tamminen

Montevidéu em festa. Foto: Juha Tamminen

 

Analisando todo esse cenário podemos sugerir algumas respostas para a nossa pergunta do dia: por que a FIFA escondeu o Mundialito de todos os seus registros oficiais?

A resposta mais relevante talvez seja esta: não era interessante para a FIFA ser relacionada a uma competição que foi um dos pilares para a derrocada de um regime militar. Vincular futebol e política dessa maneira afetaria os negócios da entidade, pois colocaria a FIFA, vejam vocês, numa posição política subversiva e contraditória.

Subversiva porque uma entidade que gerasse instabilidade política num país não teria a boa vontade de governos, empresas e investidores para patrocinarem seus eventos. E contraditória porque ela, ao mesmo tempo, apoiara um governo militar – já que realizara o Mundialito num país com ditadura – e organizara um evento que contribuíra para a queda desse mesmo governo. Uma dicotomia.

 

10 JH

João Havelange. Eterno presidente da FIFA

 

Talvez por isso e por outros motivos que foram levados para a tumba por João Havelange, é que uma competição tão emblemática, de tamanha importância histórica – foi realizada durante um regime militar e funcionou como combustível para sua queda – e que fora concebida e organizada pela própria FIFA, não tenha nenhum registro oficial nos canais de informação e divulgação da entidade.

Para saber mais sobre o Mundialito sugiro três documentários de excelência jornalística e cinematográfica. Valem muito pelo resgate e análise de uma competição tão importante para a história do futebol e tão boicotada por quem a organizou.

 

• MUNDIALITO, de Sebastián Bednarik e Andrés Varela. Uma raridade. Comprei o DVD em Montevidéu numa viagem que fiz ao Uruguai em 2015. Trailler:

 

• MEMÓRIAS DO CHUMBO – O FUTEBOL NOS TEMPOS DO CONDOR: URUGUAI, de Lúcio de Castro. Série de quatro documentários que abordam a relação do futebol com as ditaduras na Argentina, Uruguai, Chile e Brasil:

 

• CONVERSA COM JH, de Ernesto Rodrigues. Entrevista com João Havelange. Documentário sobre o processo, e por que não dizer, façanha dos envolvidos, para escrever a biografia autorizada do eterno presidente da FIFA. Imperdível:

 

 

Fontes:

 

• Futbox – Centro de pesquisa gráfica sobre futebol (acervo ilustrações)
• Getty Imagens: banco de imagens (fotografias)
• Mundalito: documentário, Sebastián Bednarik e Andrés Varela
• Memórias de Chumbo: documentário, Lúcio de Castro
• Conversa com JH: documentário, Ernesto Rodrigues
• Site: El Gráfico
• Site: El Observador
• Livro 100 Años de Gloria, do jornal El Pais
• Blogs: Storie di Calcio, Calcio Romantico, IlSudEst
• RSSSF: banco de dados (Mundialito)
• Wikipédia: Mundialito

 

Veja também:

 

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Rápido e Rasteiro como Diniz no Cruzeiro

Vitória. Uma crônica sobre o futebol de várzea

A desconstrução estética e tática do futebol brasileiro

 

Podcast:

 

Clique na imagem abaixo e confira o bate-papo na íntegra no Bora Pra Resenha Podcast onde falamos sobre a revitalização das marcas dos clubes de futebol, seleção brasileira, calendário, VAR, regras atualizadas, as novas demarcações do campo e muitas outras curiosidades sobre a história do futebol:

Futbox no Bora Pra Resenha

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João Corneta

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