Vitória. Uma crônica sobre o futebol de várzea
Aos cinquenta anos, sento-me à sombra de uma árvore, que já foi um arbusto tímido e bem conhecido, e olho para trás com um sorriso dolorido.
Quando tinha meus doze anos, meu mundo era a periferia da capital. Ali, entre vielas e ruas de terra batida, descobri um talento incrível para jogar futebol. O campo de várzea era o nosso palco, o lugar onde os sonhos mais impossíveis ganhavam forma e som.
Era um tempo em que as meninas não tinham vez no futebol, tempo inclusive, que insiste em não desaparecer. Meus primeiros chutes foram em uma bola de meia, nossos primeiros fãs, as crianças da vizinhança.
Mulher, negra e moradora da periferia eram desafios que enfrentávamos, desde criança, mas o futebol criava uma leveza bem-vinda, mesmo que por apenas algumas horas. Dona Filó, minha mãe, sempre dizia que o mundo era uma partida muito difícil, onde cada gol marcado naquele campinho “era um sorvete delicioso, mas que derretia rápido”. E assim, cada vez que sentia o toque da bola nos meus pés, era como se desafiasse o destino e mostrasse que o nosso lugar era ali mesmo, com a bola, junto dos meninos e com o sorvete na boca.
Na escola, ao lado do campinho, os professores muitas vezes duvidavam das histórias que contávamos, descrevendo os golaços que eram marcados a menos de 100 metros dali. Lembro-me de um dia em particular, quando fomos convidadas para jogar um torneio de bairro. Éramos as únicas duas meninas de todo o torneio. “Vai estragar o jogo”, disse um menino. Mas aquele foi o dia em que Vitória marcou um gol que seria a sua marca. Aplausos vindos da arquibancada improvisada foram uma surpresa até para quem aplaudia. Os vizinhos, mesmo os mais céticos, começavam a torcer por Vitória e a cada jogo, ela mostrava que o talento não escolhia cor, gênero ou lugar para nascer.
Com o tempo, Vitória ganhou respeito e admiração. Foi convidada para jogar em um clube da capital, que tinha o apelido de “Moleque Travesso”. Logo no primeiro dia, já foi dizendo: por que não é “Moleca Travessa”? Todos riram. Ficou pouco tempo lá.
Hoje, vejo que a história de Vitória inspirou muitas outras meninas, além de mim. O campinho de várzea ainda está aqui, um portal entre passado e futuro. Vitória morreu aos 16 anos, perdeu a vida numa troca de tiros entre a milícia e a polícia. Eu estava ao lado dela naquele momento. Foi tudo muito rápido.
Algum tempo depois, não sei se dias ou meses, decidi dedicar minha vida ao futebol, a cuidar das meninas da nossa comunidade, pois eu, nunca tive talento algum para jogar bola. Depois de formada e com a ajuda de vizinhos, fundei uma escolinha de futebol para crianças, a “Vitória Futebol Feminino”, minha forma de honrar a memória de Vitória e de agradecê-la, todos os dias, por seu breve e eterno legado.
Desde então, vejo a menina Vitória sempre que uma criança entra no campinho, umas descalças, inclusive, e sei que, apesar de tudo, cada gol marcado por elas é uma Vitória para todas.
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Foto de capa: Sidney Corrallo | Estadão. Lance da partida entre as equipes de futebol feminino do A. A. Corinthians B.R. e G.E. Black Power, realizada em 18 de abril de 1976, em um campo de várzea na cidade de São Paulo.
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